dentesguardados #10 Bugônia
No dia 18 de junho, daqui a cerca de um mês, chega às livrarias O deus das avencas, meu livro novo. A pré-venda já está disponível em livrarias online e no site da Companhia das Letras. As duas edições anteriores da newsletter trouxeram trechos de duas das três novelas que compõem o volume, e nesta vocês encontrarão o capítulo de abertura da terceira, Bugônia. A capa é esta:
E agora paro de falar do livro aqui, até porque precisarei falar dele, falar falando, até cansar nos bate-papos e atividades de lançamento. Meu Twitter e os canais da Companhia das Letras vão dar a agenda conforme as coisas forem acontecendo. Espero encontrar vocês por lá também. Nessa edição estou pulando os links e a playlist. Obrigado a todos mais uma vez pela leitura e pelas interações :)
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Bugônia
Na aurora violácea Chama se afasta do Organismo pela trilha que leva às colmeias. Seus chinelos feitos de borracha de pneu e cabos de carregador esmagam nódoas de terra seca, o imundo poncho-pala de fibra de cânhamo roça seus quadris estreitos, as perneiras de couro de javali nas coxas e canelas impedem que as macegas altas e espinhentas rasguem sua pele castanha, na qual ferimentos superficiais deixam cicatrizes lisas e brancas. Atravessa pela rota bem conhecida o campo de eucaliptos mortos, uma cama de gato de troncos caídos, finos e estranhamente preservados no ar seco, contorna o morro de onde se avista o vale, cumprimenta com um olhar Boloto, o vigia daquele turno, trepado no esqueleto retorcido da antiga torre de transmissão, sobe a elevação rochosa, coberta aqui e ali por uma penugem de liquens rosados, e avista, enfim, a cidadela de cupinzeiros marrom-claros, alguns mais altos do que ela, parecendo tenros e inocentes no terreno escuro ao redor como brotos de montanhas. Reduz o passo e se detém alguns metros antes de alcançar a primeira colmeia. Não é preciso chegar muito perto. Já pode sentir a diferença, aquela outra atmosfera, como se o ar transpirasse na manhã que aquece. Algumas abelhas despertaram cedo como ela e circundam com voo suave e circular as estreitas portas de seus cupinzeiros, vedadas com própolis e adornadas de minúsculas flores amarelas e roxas. Levanta o queixo, respira fundo, abre a boca, estende um pouco os braços e volta para cima as palmas raladas das mãos. Sua língua seca se umedece primeiro, depois se molham todas as mucosas da cabeça, do corpo. Seus joelhos amolecem. Para Chama é como se as estrelas ofuscadas derramassem saliva em sua garganta. A umidade brota nos olhos, no meio das pernas. Algumas abelhas pousam em seu rosto e mãos, curiosas ou meramente entretidas com essa aliada que as visita quase todas as manhãs. Esse ar tão seco, sempre tão seco. Chama comprime as coxas, os pulmões se esvaziam em rajadas curtas e enchem de novo, irrigados. Logo o sol branco invadirá a terra e as abelhas começarão a buscar água no regato para iniciar seu prodigioso esforço de resfriamento das colmeias, batendo as asas como ventiladores, soprando o vapor fresco nos favos de mel translúcido. Às vezes quando ousa chegar perto o bastante ela sente o ar fresco e úmido sendo expulso pelas frestas dos cupinzeiros junto com o aroma doce e rançoso do necromel que imuniza contra a peste do sangue e a mantém viva ali no Topo. Assim era o ar-condicionado da terra antiga, lhe disseram. Dava para esfriar ou aquecer o ar no pedaço que se queria. As abelhas detectam antes dela a aproximação dos outros. Soa um zumbido rouco de asas agitadas. Uma delas pousa no seu ombro e estrepita tal qual uma broca, como se quisesse entrar na sua pele. Chama recua com respeito e cautela. A aliança, não cansa de ensinar a Velha, é um pacto reescrito a todo instante. Uma sintonia frágil entre corpos, uma dança. Vozes de humanos fazem a curva no morro e alcançam a colmeia. São os outros trazendo o cadáver novo. Chama fica onde está, não tem vergonha de se umedecer daquele jeito, todos conhecem seu costume. Quando estão bem próximos ela se vira. Tão e Deia vêm trazendo dentro de um casulo tricotado em lã de ovelha o cadáver da pequena Ramona, mordida por uma jararaca dois dias antes enquanto corria atrás de uma cabritinha para brincar. Atrás deles segue uma fileira de humanos do Organismo que vêm prestigiar a oferenda, entre eles Celso com sua comprida barba ruiva e luvas de apicultor, a Sereia e sua saia de telinhas de vidro de celular exibindo reflexos faiscantes da paisagem do Topo, os meninos gêmeos do Alfredo e atrás deles o próprio Alfredo, com um de seus cadernos estufados de caligrafia miúda e uma de suas preciosas canetas esferográficas. O fragor das abelhas cessa de súbito. As que voejavam pousam na superfície de seus cupinzeiros e descansam as asas, observando, trocando informações com rearranjos sutis de seus corpos, intrigando mais uma vez o olhar de Chama, que acredita quase detectar padrões na geometria coletiva, vultos de uma linguagem. Tão e Deia depositam o cadáver a alguns metros das colmeias sobre tufos de capim seco. Não há ritual. Apenas desembrulham Ramona da mortalha de lã e a depositam ali. A menina está nua, dura, cerosa, penteada. Chama lembra de tê-la lavado quando era bebê e alimentado com leite de cabra quando desmamou, de cuidar de seu sono e cortar suas unhas moles quando chegava a sua vez de zelar pelas crianças pequenas do Organismo. A pequena Ramona que gostava de trepar na carcaça enferrujada do trator e derramar terra no tanque como se colocasse gasolina, até o dia em que o tanque transbordou e ninguém conseguiu esvaziar. Que mijava em pé em cima das flores para que crescessem fortes e fornecessem muito néctar às abelhas. Tão e Deia soluçam e se abraçam. Chama também sente vontade de chorar, mas se impede. Chega perto dos pais biológicos da menina e toma a mortalha de suas mãos, permitindo que se abracem com mais força. Aspira o aroma salgado da lã da mortalha, alisa o tecido e esfrega um no outro os dedos lubrificados de lanolina. Depois que todos foram embora, Chama continua vigiando as colmeias por algum tempo, agora mais afastada, não querendo interferir. As abelhas se demoram como se quisessem também respeitar o luto. Nuvens finas deslizam em várias camadas no céu violáceo como se fosse o Topo, e não elas, que se deslocasse em grande velocidade. Chama senta numa pedra e sente uma tontura conhecida, que vem do medo. O medo que sente de vez em quando ao contemplar tanta violência e carinho em ciclos vertiginosos, toda essa geração e destruição da qual não há escape nem alívio duradouro, medo da dor física que a aguarda pela vida afora, medo de não estar preparada para os fenômenos do próximo instante, nem agora nem nunca, apesar de buscar ter coragem no peito e clareza no pensamento. Faz o que pode para ter acesso límpido à beleza dos processos dos quais faz parte, como a advertiu mais de uma vez a Velha em suas rodas de conversa. Treina seus sentidos para isso, como lhe foi ensinado desde menina, deixa-os abertos, expectantes, renovados. Mas a beleza não a conforta como conforta aos outros. Ainda está por descobrir onde mora o seu alívio. O zunido das abelhas a retira de si mesma. Acima do corpinho duro de Ramona, as volantes se aglomeram num grande novelo. O enxame faz figuras e uma delas, Chama está convencida, é um rosto que a encara. Entende que está abusando da hospitalidade. Sorri, cheia de ternura e espanto, dá as costas às abelhas e toma o caminho de volta para casa.
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ⓒ Daniel Galera
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