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May 5, 2020

Tipo Aquilo #24 – Um conto de dois futebóis

Eu sei que “futebóis” não é dos plurais mais bonitos do nosso vocabulário, mas assumo que ele é tão desconhecido quanto horroroso. Por isso, fiquem com ele para vocês pensarem e lembrarem nos momentos menos oportunos possíveis, enquanto eu me viro aqui pra não usa-lo de novo. De nada. :D

Historicamente, o futebol de bola redonda e o de bola oval guardam um parentesco distante. O soccer, influenciado por uma versão primitiva do esporte conhecida como cálcio Florentino, tem suas primeiras regras definidas na Inglaterra, em 1848. O football, por sua vez, encontra solo fértil nas universidades tradicionais dos EUA em 1863, mesclando elementos do futebol europeu com o rugby. Desde então, o soccer e o football existem no mundo numa dualidade similar à do metro e polegada, ou Celsius e Fahrenheit: enquanto um é tido como padrão no resto mundo, o outro permanece como padrão americano só de sacanagem mesmo por tornar-se uma invenção americana popular. No entanto, existe algo que une visualmente estes dois esportes: os números nas camisas.

Em 1923, o Third Lanark da Escócia e o Zona Norte da Argentina fazem o primeiro jogo na América com uniformes numerados.
Em 1923, o Third Lanark da Escócia e o Zona Norte da Argentina fazem o primeiro jogo na América com uniformes numerados.

O primeiro registro uso de uniformes numerados é de 1903. Curiosamente, não é nem do futebol europeu e nem do americano, mas sim do futebol australiano, o footy. Também na Austrália, existe o primeiro registro de uniformes numerados no soccer, em 1911. Na Europa, eles surgiram nos uniformes na década de 1920, tornando-se padrão na década seguinte; inicialmente, cada número referia-se à posição do jogador em campo, e caso o jogador mudasse de posição, seu número também mudava. Nos EUA, A NFL foi formada nessa época, e de berço tinha a numeração em camisas como padrão, mas sem critérios de posição; bastava que o número fosse grande o suficiente para o jogador ser reconhecido de longe pelos companheiros de equipe, torcedores e árbitros.

Nos dois esportes, a constante necessidade de produzir novas camisas expostas a situações de grande desgaste fez com que os números tivessem formas simples e fáceis de serem reproduzidas em costura, serigrafia ou pelo processo de transferência a quente. Este último processo, nascido em 1936 nos EUA, popularizou o estilo universitário (varsity) de números e letras, pois a confecção das estampas passou a ser feita pelos próprios times, mas por algumas décadas os moldes de números diferiam-se apenas por cores.

Futebol americano em 20 de novembro de 1960, num jogo entre Giants e Eagles
Futebol americano em 20 de novembro de 1960, num jogo entre Giants e Eagles

O nascimento do processo de estampa a quente e a ligação do esporte com a vida universitária nos EUA fez com que os números com desenhos simples, quadradões e com pouco contraste ficassem famosos. Essas letras e números também eram facilmente reconhecíveis à distância, favorecendo a distinção dos jogadores pelos companheiros de equipe, adversários, árbitros, locutores e a torcida. O futebol europeu foi mais afeito a trazer inovações visuais como efeitos de sombreamento, listras e texturas, enquanto o futebol americano manteve aplicações mais conservadoras. Com o tempo, esse estilo tornou-se um cliché para o universo dos esportes, pois ajudam a demonstrar conceitos como força, desempenho, determinação e por aí vai.

O jogador Kenny Moore II com o novo uniforme do Indianapolis Colts.
O jogador Kenny Moore II com o novo uniforme do Indianapolis Colts.

Aliás, sobre os nomes nas camisas, devemos essa tradição ao Chicago White Sox, que lançaram essa novidade no beisebol em 1960 e foram tendência para os demais esportes americanos — basquete e futebol americano. No futebol europeu, nomes nas camisas só seriam usadas pela primeira vez em 1993, na Premier League, mas o ano seguinte foi determinante para que isso virasse padrão nos uniformes. 1994 foi ano de TETRA!!! Copa do Mundo, justamente nos EUA, um mercado que a FIFA sempre quis conquistar.

Os goleiros Pagliuca e Taffarel, durante os pênaltis na final da Copa do Mundo de 1994 contra a Itália. Créditos: l30_
Os goleiros Pagliuca e Taffarel, durante os pênaltis na final da Copa do Mundo de 1994 contra a Itália. Créditos: l30_

Apesar das letras e números quadradões, o tempo passou e novos tecidos passaram a ser utilizados nos esportes, assim como novos processos de impressão em tecido surgiram e davam maior liberdade para as formas dos tipos. Fontes tradicionais de outros meios de impressão puderam ser impressas nas camisas com facilidade, e o uniforme tornou-se mais um campo de batalha do branding esportivo. Inclusive, projetar fontes exclusivas e apropriadas para uniformes tornou-se algo comum no design de fontes, e tem sido recorrente que novos uniformes tragam typefaces inéditas.

A problemática tipografia dos uniformes da Adidas para a Copa do Mundo de 2018
A problemática tipografia dos uniformes da Adidas para a Copa do Mundo de 2018

Só que a abordagem do branding em uniformes apenas pelas fontes utilizadas, mas também pelo valor simbólico que certos números representavam. Por exemplo, tanto no ludopédio quanto no esporte do tigelão, é comum certos números serem “aposentados” em honra à fama e contribuição ao esporte de grandes jogadores. Por isso, o futebol europeu, por razões de marketing, abandonou a numeração por posição (exceto para goleiros). O futebol americano, mesmo com números aposentados, ainda dispõe de regras que recomendam com ênfase números relativos à posição do jogador em campo.

Trecho do livro Football Type 2, de Rick Banks, com os uniformes do L.A. Galaxy
Trecho do livro Football Type 2, de Rick Banks, com os uniformes do L.A. Galaxy

Um livro que conta bem a história de números em camisas no soccer é o “Football Type”, de Rick Banks, que conta com muitas fotos e ilustrações de typefaces clássicos das ligas principais e do futebol internacional, embora as 40 libras hoje representem uma quantidade proibitiva de reais para se adquirir o livro. Por mais que tenham nascido com um propósito estritamente funcional, os uniformes numerados viraram símbolos e mantos em quase todo esporte, tornaram-se uma linguagem com muito a ser explorado, e um assunto com mais a contar do que parece.

Agradecimentos a Leon Sampaio, Renan Vasconcelos, Gustavo Boese e Ricardo Ramos pela inspiração e ajuda nessa pauta. =)

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Antes das recomendações, uma pequena errata da edição anterior, onde falei que um operador lógico de diferente era a interrogação com igual, mas na verdade é exclamação com igual (!=). Algumas linguagens também usam a combinação de maior que e menor que (<>), mas é bem menos usual.

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Recomendações:

  • 🎧 Podcast: Multicast #7, que discute sobre como funciona o branding no futebol.
  • 🎥 Vídeo: NFL Films: NFL Stars Jersey Number Origin Stories (em inglês), com a história de alguns jogadores que fizeram seus números serem famosos no esporte.
  • 🔗 Link: Face37: Football Type 2, o livro de Rick Banks dedicado à memória da tipografia no futebol.
  • 🇧🇷 Fonte brazuca: Pacaembú, de Álvaro Franca e Felipe Casaprima.

Escrito em 97939.96

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