Tipo Aquilo #24 – Um conto de dois futebóis
Eu sei que “futebóis” não é dos plurais mais bonitos do nosso vocabulário, mas assumo que ele é tão desconhecido quanto horroroso. Por isso, fiquem com ele para vocês pensarem e lembrarem nos momentos menos oportunos possíveis, enquanto eu me viro aqui pra não usa-lo de novo. De nada. :D
Historicamente, o futebol de bola redonda e o de bola oval guardam um parentesco distante. O soccer, influenciado por uma versão primitiva do esporte conhecida como cálcio Florentino, tem suas primeiras regras definidas na Inglaterra, em 1848. O football, por sua vez, encontra solo fértil nas universidades tradicionais dos EUA em 1863, mesclando elementos do futebol europeu com o rugby. Desde então, o soccer e o football existem no mundo numa dualidade similar à do metro e polegada, ou Celsius e Fahrenheit: enquanto um é tido como padrão no resto mundo, o outro permanece como padrão americano só de sacanagem mesmo por tornar-se uma invenção americana popular. No entanto, existe algo que une visualmente estes dois esportes: os números nas camisas.

O primeiro registro uso de uniformes numerados é de 1903. Curiosamente, não é nem do futebol europeu e nem do americano, mas sim do futebol australiano, o footy. Também na Austrália, existe o primeiro registro de uniformes numerados no soccer, em 1911. Na Europa, eles surgiram nos uniformes na década de 1920, tornando-se padrão na década seguinte; inicialmente, cada número referia-se à posição do jogador em campo, e caso o jogador mudasse de posição, seu número também mudava. Nos EUA, A NFL foi formada nessa época, e de berço tinha a numeração em camisas como padrão, mas sem critérios de posição; bastava que o número fosse grande o suficiente para o jogador ser reconhecido de longe pelos companheiros de equipe, torcedores e árbitros.
Nos dois esportes, a constante necessidade de produzir novas camisas expostas a situações de grande desgaste fez com que os números tivessem formas simples e fáceis de serem reproduzidas em costura, serigrafia ou pelo processo de transferência a quente. Este último processo, nascido em 1936 nos EUA, popularizou o estilo universitário (varsity) de números e letras, pois a confecção das estampas passou a ser feita pelos próprios times, mas por algumas décadas os moldes de números diferiam-se apenas por cores.

O nascimento do processo de estampa a quente e a ligação do esporte com a vida universitária nos EUA fez com que os números com desenhos simples, quadradões e com pouco contraste ficassem famosos. Essas letras e números também eram facilmente reconhecíveis à distância, favorecendo a distinção dos jogadores pelos companheiros de equipe, adversários, árbitros, locutores e a torcida. O futebol europeu foi mais afeito a trazer inovações visuais como efeitos de sombreamento, listras e texturas, enquanto o futebol americano manteve aplicações mais conservadoras. Com o tempo, esse estilo tornou-se um cliché para o universo dos esportes, pois ajudam a demonstrar conceitos como força, desempenho, determinação e por aí vai.

Aliás, sobre os nomes nas camisas, devemos essa tradição ao Chicago White Sox, que lançaram essa novidade no beisebol em 1960 e foram tendência para os demais esportes americanos — basquete e futebol americano. No futebol europeu, nomes nas camisas só seriam usadas pela primeira vez em 1993, na Premier League, mas o ano seguinte foi determinante para que isso virasse padrão nos uniformes. 1994 foi ano de TETRA!!! Copa do Mundo, justamente nos EUA, um mercado que a FIFA sempre quis conquistar.

Apesar das letras e números quadradões, o tempo passou e novos tecidos passaram a ser utilizados nos esportes, assim como novos processos de impressão em tecido surgiram e davam maior liberdade para as formas dos tipos. Fontes tradicionais de outros meios de impressão puderam ser impressas nas camisas com facilidade, e o uniforme tornou-se mais um campo de batalha do branding esportivo. Inclusive, projetar fontes exclusivas e apropriadas para uniformes tornou-se algo comum no design de fontes, e tem sido recorrente que novos uniformes tragam typefaces inéditas.

Só que a abordagem do branding em uniformes apenas pelas fontes utilizadas, mas também pelo valor simbólico que certos números representavam. Por exemplo, tanto no ludopédio quanto no esporte do tigelão, é comum certos números serem “aposentados” em honra à fama e contribuição ao esporte de grandes jogadores. Por isso, o futebol europeu, por razões de marketing, abandonou a numeração por posição (exceto para goleiros). O futebol americano, mesmo com números aposentados, ainda dispõe de regras que recomendam com ênfase números relativos à posição do jogador em campo.

Um livro que conta bem a história de números em camisas no soccer é o “Football Type”, de Rick Banks, que conta com muitas fotos e ilustrações de typefaces clássicos das ligas principais e do futebol internacional, embora as 40 libras hoje representem uma quantidade proibitiva de reais para se adquirir o livro. Por mais que tenham nascido com um propósito estritamente funcional, os uniformes numerados viraram símbolos e mantos em quase todo esporte, tornaram-se uma linguagem com muito a ser explorado, e um assunto com mais a contar do que parece.
Agradecimentos a Leon Sampaio, Renan Vasconcelos, Gustavo Boese e Ricardo Ramos pela inspiração e ajuda nessa pauta. =)
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Antes das recomendações, uma pequena errata da edição anterior, onde falei que um operador lógico de diferente era a interrogação com igual, mas na verdade é exclamação com igual (!=). Algumas linguagens também usam a combinação de maior que e menor que (<>), mas é bem menos usual.
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Recomendações:
- 🎧 Podcast: Multicast #7, que discute sobre como funciona o branding no futebol.
- 🎥 Vídeo: NFL Films: NFL Stars Jersey Number Origin Stories (em inglês), com a história de alguns jogadores que fizeram seus números serem famosos no esporte.
- 🔗 Link: Face37: Football Type 2, o livro de Rick Banks dedicado à memória da tipografia no futebol.
- 🇧🇷 Fonte brazuca: Pacaembú, de Álvaro Franca e Felipe Casaprima.
Escrito em 97939.96