Tipo Aquilo #19 – Criei um livro pra caçar bruxas e olha o que aconteceu!
Minha primeira ideia era publicar esse texto na última semana de outubro, por motivos de halloween e tal, mas enfim, hoje vamos olhar para a história de um dos livros mais impressos, vendidos e malditos da nossa civilização, e observar alguns aspectos das primeiras décadas seguintes à invenção da prensa tipográfica. Para falar do Malleus Maleficarum, precisamos também falar sobre clérigos misóginos sem escrúpulos, renascimento e letras romanas, traduções mal-intencionadas, como identificar bruxas e coisas que ninguém espera.

Antes de prosseguir, vale a pena um aviso. Embora o livro suscite discussões interessantes acerca de tipografia e design editorial, longe de mim querer romantizar uma obra cujo autor tinha caráter desgraçado e que seu conteúdo ajudou a propagar tanta morte e perseguição fundamentalista pelo mundo. Assim como outros livros controversos, deve ser entendido como uma mera pilha de papeis impressos e costurados com preceitos bem diferentes dos nossos.
Dito isso, vamos a uma história rápida do livro. Em 1484, o clérigo alemão Heinrich Kramer conseguiu a façanha de ser expulso da Igreja Católica por sua obsessão em condenar sete mulheres que ele acreditava que praticaram magia negra contra um cavaleiro. Meses depois, atendendo a um pedido, recebe uma bula papal endereçada a ele e ao monge dominicano Jacob Sprenger que autorizava ambos a investigar, capturar e julgar praticantes de bruxaria. Em 1987, Kramer finaliza o compêndio de três partes: primeira, sobre quem são e o que fazem as bruxas; segunda, sobre como identifica-las; terceira e última, sobre procedimentos legais para julgá-las e erradica-las. Kramer anexa o texto da bula papal aos impressos e consegue imprimir e distribuir cópias suficientes para, na época, fazer do livro o mais vendido no Ocidente. Os próximos anos, graças ao livro, fariam coexistir na Europa um desenvolvimento científico e comercial sem precedentes, e um recrudescimento em visões fundamentalistas com perseguição religiosa, especialmente contra mulheres.

Passado (um pouco) o desgosto, vamos aos primeiros apontamentos. Quase 40 anos antes, Gutenberg imprimiu suas primeiras edições da Bíblia de 42 linhas, composto em tipos góticos (ou blackletter); assim foi também a primeira edição do Malleus, impressa em Speyer e diagramada em 48 linhas. No entanto, enquanto a Bíblia de Gutenberg apresentava letras góticas textura, as letras do livro de Kramer apresentava góticas rotundas, ligeiramente mais parecidas com as letras romanas com que estamos acostumados. Nos reinos que unificar-se-iam até formar a atual Alemanha, o blackletter continuou sendo muito usado. Como exemplo, as edições do Malleus impressas fora da Alemanha eram compostas em letras romanas; contemporâneos, os folhetos e publicações de Lutero, impressos durante a reforma protestante no território germânico, eram compostos em blackletter.
Já na França, Itália e vizinhos, o blackletter teve pouco espaço nas prensas frente às letras romanas, inspiradas na caligrafia Paduana e num resgate das letras capitais do Império Romano. Essa transição gradual e pouco homogênea ajuda a mostrar as transformações culturais encabeçadas pelo Renascimento. Anteriores até mesmo ao Malleus, os primeiros tipos romanos apareceram na Itália em 1469, pelas mãos de Johannes da Spira (ou Von Speyer, para termos uma coincidência). Logo depois, os tipos do francês Nicolas Jenson fariam sucesso, estabelecendo o estilo de letras que temos até hoje. A partir desse período, cada nação estabeleceria, a seu tempo, um estilo próprio de tipografia nacional, de forma semelhante ao que aconteceu com a caligrafia.

Outro aspecto histórico do Malleus diz respeito a uma romantização da prensa tipográfica de que ela teria sido proibida pela Igreja Católica, o que não é consenso entre historiadores. A instituição assumiu controle sobre várias oficinas tipográficas na Europa, e cada publicação exigia aprovação do clero para ser impressa e distribuída. Contudo, a própria igreja vinha perdendo poder político a partir do séc. XV, e consequentemente, perdendo controle sobre as tipografias. Nesse ínterim, a instituição tomou como problemas menores tanto a bruxaria em si quanto o Malleus, e pouco fez pra conter o sucesso do livro. A bula do papa Inocêncio VIII, reproduzida no início do livro, deu a Kramer a autoridade que precisava para sua caça às bruxas, até que fosse excomungado pela Igreja justamente por causa do livro. Tão logo, o Malleus Maleficarum foi incluso no Index Librorum Prohibitorum — sim, a listinha do proibidão da Igreja.
Uma última curiosidade sobre o livro diz respeito à sua tradução, feita pela primeira vez quase setenta anos após a morte de Kramer. Até o momento em que foi escrito, o Latim ainda era tida como “língua universal”. No final do século XVI, surgiram as versões traduzidas em Alemão e Polonês, e para demais línguas alguns anos depois. A edição polonesa tem uma dose extra de sadismo ao não incluir a terceira parte do livro, sobre como julgar bruxas. Ao não incluir os procedimentos e algumas restrições previstos pelo autor, os religiosos poloneses se viram livres de restrições. Algo semelhante aconteceu na Massachusetts colonial, durante a perseguição às Bruxas de Salem, em que os Puritanos adotaram diversos preceitos do Malleus.

Após o século XVII, o Malleus deixou de ser impresso em seu formato original, como um guia de combate à bruxaria. Levaria quase 200 anos até que o livro fosse revisitado, agora como um registro histórico de uma época turbulenta que levou muitos inocentes — mulheres em grande maioria — a mortes crueis. Assim como outros livros controversos (pra não dizer malditos), as edições atuais tratam-no mais ou menos como eu fiz no começo, como algo que precisa ser isolado em seu tempo para ser compreendido e nunca tomado como um código de conduta. É também uma amostra do poder de disseminação cultural que a tipografia deu, e que sem responsabilidade, pode ser usada para fins crueis. Tanto que a humanidade aprendeu sua lição e nunca mais apareceram sucessos literários controversos na Alemanha. Risos.
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Recomendações:
- 🎧 Podcast: Books in the Wild #9, com Keri Schroeder contando mais histórias e curiosidades do Malles Maleficarum.
- 🎥 Vídeo: Printing on a Gutenberg Press, uma demonstração simulada de como era trabalhar com as máquinas da tipografia de Gutenberg.
- 🔗 Link: The Venetian Origins of Roman Type, artigo sobre as origens das letras romanas e suas origens caligráficas.
- 🇧🇷 Fonte brazuca: Gandur Alte, de Daniel Sabino.
Escrito em 97453.6