Tipo Aquilo #12 – Na União Soviética, as fontes escrevem VOCÊ!
O Cazaquistão é daqueles países que conseguiram a proeza de ter praticamente toda sua população alfabetizada. O país viu que isso não era mais desafio, então toparam algo mais audacioso em 2017: mudar sua escrita oficial do cirílico (de volta) para o latino. Até 2025, todos os documentos e registros oficiais, sistemas de ensino e mídia devem (voltar a) utilizar o alfabeto latino proposto para a língua Kazakh, com 32 letras.
Historicamente, o Cazaquistão e outros países da Ásia Central foram “russificados” pela URSS, perdendo vários elementos de suas identidades nacionais. A ideia era afastar suas nações túrquicas de relações com a Turquia durante a Crise dos Estreitos Turcos e manter Moscou como centro cultural. Nações que escreviam com letras latinas ou alfabeto árabe passaram a escrever em cirílico, assim como a Rússia e outros países do Leste Europeu, e utilizar o maquinário da indústria gráfica soviética para imprimir e compor publicações, o Polygraphmash.
Além de produzir máquinas para oficinas gráficas, o Polygraphmash foi o órgão estatal responsável pela produção tipográfica da URSS, já que o bloco era isolado comercialmente pela Guerra Fria e culturalmente pelo seu alfabeto oficial. Foram fundidos tipos móveis de várias fontes novas, releituras de fontes latinas adaptadas para o cirílico e revivals de tipos utilizados no Império Russo de outras fundidoras. As mais utilizadas foram a Literaturnaya e a Zhurnalnaya. Caso precisasse de uma fonte com cara mais “moderna”, o Polygraphmash dispunha também da Zhurnalnaya Roublennaya e da Gazetnaya como opções de fontes roublennaya*.
Com as tipografias e o parque gráfico da Polygraphmash, Moscou produzia o material escolar utilizado nas repúblicas soviéticas, também a maioria dos periódicos impressos e da literatura. A URSS utilizou tipos móveis e linotipia durante praticamente toda a sua existência, não conseguindo acompanhar o ocidente na fotocomposição e na composição digital. Existiam mais de 8 mil jornais na União Soviética até o fim do bloco, em 1989. Para levar informação a outros países da Ásia Central (como o Cazaquistão) e do Leste Europeu, quase 3 mil desses jornais eram escritos nas línguas desses países.
Por motivos óbvios, a Polygraphmash detinha a mais completa coleção de tipografia cirílica do mundo. Hoje, esse legado pertence à ParaType, e após a abertura política e econômica da Rússia, ela tornou-se referência mundial em produção tipográfica multi-escrita. Outras foundries, como a Grilli Type, também produziram fontes a partir do legado do Polygraphmash.
O fim da União Soviética deixou dezenas de estados independentes, muitas questões pendentes em política e direito internacional, e um xadrez geopolítico espinhoso e difícil de jogar. O caminho tomado pelo Cazaquistão não é inédito, e até hoje vizinhos como o Uzbequistão têm tido problemas em retomar seu passado escrito. Em circunstâncias comuns, o cirílico tende perder espaço onde foi imposto; mas gerações que cresceram com alfabetos diferentes ainda precisarão comunicar-se por muito tempo, e a herança tipográfica do Polygraphmash ainda será útil por muito tempo.
*: fontes roublennaya são apenas fontes sem serifa. ;)
Recomendações:
- 🎧 Podcast: Entreletras #4, com o type designer Rafael Saraiva falando sobre o desenvolvimento de tipos além dos latinos.
- 🎥 Vídeo: Vladimir Efimov: grandes fontes (Владимир Ефимов: Великие шрифты), uma série de vídeos de 2010 em que Vladimir Efimov (falecido diretor da Paratype e designer da Polygraphmash) apresenta várias versões de fontes clássicas em várias escritas. (é em russo, então vale a pena saltar entre partes interessantes no preview)
- 🔗 Link: Zhurnalnaya Roublennaya: A Poor Man’s Futura, artigo de Ivar Sakk para o Fonts In Use que foi referência principal para esta edição.
- 🇧🇷 Fonte brazuca: SporTV Sou na Copa, de Fábio Haag.
Escrito em 97098.49