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Novembro 22, 2025

Newsletter BaixaCultura #76: Góticos aceleracionistas entreverados

Buenas,

Esta 76º edição do nosso boletim, a terceira no Buttondown, está um tanto diferente das outras - pelo menos das últimas. Tinha tantas pequenas coisas para destacar, divulgar, chamar atenção que acabei por fazer uma edição quase totalmente de notas. Quase, porque as duas primeiras começaram como notas e se tornaram um pouco maiores do que o esperado. Volte e meia o especto do aceleracionismo assombra o BaixaCultura, trazendo consigo também Mark Fisher e algumas reflexões mais “filosóficas”, digamos, sobre tecnologia, cultura e comportamento. Gosto disso: se deixasse, e os afazeres da lida doméstica e o meu trabalho oficial permitisse, talvez fuçaria ainda mais nessa cultura digital filosófica. Mas por hora já está de bom tamanho as ideias aqui jogadas, assim como essa apresentação.

Leonardo Foletto
São Paulo, 22/11/2025

CULTURA DIGITAL NÃO É O PROBLEMA, MAS O CAPITALISMO

Um trecho de uma fala de Mark Fisher sobre smartphones trouxe à tona novamente o debate sobre sua obra, mas com uma interpretação um tanto equivocada. Mattie Colquhoun, fotógrafa/ escritora inglesa especialista em Mark Fisher e editora do ótimo Xenogothic, critica como as pessoas têm usado Fisher apenas para reforçar um pessimismo paralisante sobre a cultura digital, ignorando que suas críticas eram sempre direcionadas ao "ciberespaço capitalista" — não à cultura digital em si.

O texto argumenta que o problema não é o digital, mas como o capitalismo colonizou e restringiu as potencialidades da internet nas últimas décadas. Mattie relembra que a internet dos anos 2000 e início dos 2010s era mais livre e criativa, sendo apenas recentemente que se intensificou seu uso para "reforçar modos de subjetividade, dessocialização e trabalho alienado". A resposta não deveria ser o "decrescimento digital" ou o viver offline, mas sim lutar pela reconstrução de um ciberespaço emancipatório. Como explica Mattie: “É claro que a Internet nunca foi uma utopia, mas devemos ao menos estar conscientes da maneira pela qual seus potenciais foram ativamente restringidos por uma classe de bilionários com medo da livre circulação de informação. A resposta a isso, no entanto, não é a retirada; assim como a retirada da sociedade em geral também não é possível (ou desejável) offline. O que buscamos escapar são as Leis de Cercamento Digital de vários governos; devemos redirecionar nossa atenção para as forças que moldam várias estruturas de sentimento, em vez de tomar esses sentimentos como "verdades" puras e subjetivas”.

Em 'Touchscreen Capture' — um ensaio publicado na sexta edição da noon, revista sul-coreana de arte contemporânea, dedicada ao tema do 'pós-online', em 2016 — Mark diz: “uma armadilha colocada pelo capitalismo comunicativo é a tentação de recuar da modernidade tecnológica. Mas isso pressupõe que o bombardeio frenético de atenção é a única modernidade tecnológica possível, da qual só podemos nos desconectar e nos retirar. O realismo capitalista comunicativo age como se a coletivização do desejo e dos recursos já tivesse acontecido. Na realidade, os imperativos do capitalismo comunicativo obstruem a possibilidade de comunização, usando o ciberespaço realmente existente para reforçar os modos atuais de subjetividade, dessocialização e trabalho árduo”.

O texto (de Mattie) fecha alertando que usar Fisher pensava no que fazer a respeito, não apenas em lamentar. A cultura digital jovem, especialmente a que emergiu durante a pandemia, “nativas digitais, profundamente imersas em suas maquinações”, oferece vislumbres de outras possibilidades – ainda que não saibamos exatamente quais hoje, em 2025. O recado final de Colquhoun é importante: “Mark foi o primeiro grande pensador da era digital, com a maior parte de seus escritos permanecendo online. Ele nunca pensou que a cultura digital era em si o problema, cancelando lentamente o futuro; o capitalismo é o responsável pelas crises digitais do presente, e sua reivindicação de monopólio sobre a digitalidade é um desenvolvimento recente, embora Mark tenha previsto isso com grande clareza. Mas suas críticas eram apenas um diagnóstico; não uma prescrição. Ele pensou muito sobre como responder, e imagino que ele teria odiado ver seu trabalho se tornar um fardo barato para a impotência reflexiva contra a qual ele lutou por duas décadas”.

Still from Tron, dir. Steven Lisberger, 1982

O CADÁVER DO ACELERACIONISMO

Benjamin Noys, que cunhou o termo "aceleracionismo" há mais de dez anos, escreveu um interessante balanço sobre o destino desse “movimento”, texto publicado no E-flux em novembro de 2025 (e que é o prefácio da nova edição de seu livro "Malign Velocities"). Noys questiona por que revisitar o cadáver do aceleracionismo, já que o movimento parece ter se esgotado como vanguarda. Ele observa que "o aceleracionismo, se morto, permanece como um espectro assombroso presidindo sobre a paisagem cultural", uma vez que as questões sobre o papel da tecnologia na cultura e na mudança política não desapareceram. Em suas palavras (tradução minha):

“Se o aceleracionismo é um movimento de vanguarda, na mesma linha do Futurismo, então, como muitos desses movimentos, ele parece ter se esgotado. Isso não é necessariamente algo a ser lamentado, mesmo por aqueles que o abraçaram. Os futuristas italianos viam seu movimento da velocidade como algo que deveria se tornar obsoleto pelas forças que eles desencadearam. De um ponto de vista cultural e político muito diferente, Guy Debord, líder dos Situacionistas nos anos 1960 e 70, pensava que o papel das vanguardas era desaparecer uma vez que seu trabalho estivesse concluído. O pró-aceleracionista poderia até argumentar que o aceleracionismo cumpriu seus objetivos, colocando os debates sobre tecnologia e mudança no centro das discussões, e agora pode deixar o campo com honra”.

Noys argumenta que, embora as paixões do momento aceleracionista tenham esmaecido e as plataformas que sustentaram seus debates (blogs e Twitter) tenham decaído, os debates sobre IA e grandes modelos de linguagem mostram que as questões permanecem urgentes. As redes sociais de hoje — dominada por bots, memes, IA e monetização — perderam sua carga utópica, deixando para trás uma cena mais esparsa e mais corrosiva. O fracasso do aceleracionismo em persistir no momento atual revelaria, segundo Noys, sua "falta de engajamento crítico com a tecnologia".


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ENTREVERO

_ Já pararam pra pensar que nos condicionamos (a maior parte das pessoas) a olhar para o streaming de música como única forma de consumir alguns produtos culturais? Mas isso passa longe de ser verdade. O pessoal do 300noise fez uma interessante pesquisa-experimento para investigar isso: "pirateou dezenas de artistas brasileiros de propósito", criando um pen drive pirata próprio. A missão era apresentar artistas independentes brasileiros a um público que está distante dos streamings mas é usuário assíduo dos pendrives: os caminhoneiros. O conteúdo dos pen drives incluía locuções gravadas com o intuito de apresentar os artistas, contextualizá-los e construir uma narrativa para os ouvintes.

A fase de distribuição e coleta de dados ocorreu literalmente na estrada, com a equipe visitando postos de gasolina e paradas de caminhão para entregar os dispositivos. A estratégia envolvia a distribuição e a solicitação de um feedback real dos usuários. Os resultados sugeriram que uma estratégia de lançamento viável poderia ser colocar a música em um pen drive e enviá-la para a estrada, e que o valor ainda pode residir no feedback humano direto — o tipo de resposta ("Isso aqui é bom, isso aqui não funciona") que nenhum algoritmo pode fornecer.

A pesquisa, chamada “O consumo Musical nas Estradas”, está disponível aqui e tem insights interessantes para discutir. O vídeo (no Instagram) que resume alguns pontos viralizou.

_ O jornalista Henk van Ess analisa, neste texto (“When AI Becomes the Hacker”) o primeiro ataque cibernético de espionagem executado autonomamente por IA. O Claude, da Anthropic, foi manipulado por um grupo chinês (GTG-1002) para descobrir vulnerabilidades e roubar dados de cerca de 30 organizações simultaneamente. O detalhe mais importante: os atacantes não hackearam o Claude, eles simplesmente mentiram para ele. Disseram que eram uma empresa legítima de cibersegurança conduzindo testes autorizados, e a IA acreditou. Van Ess admite fazer algo similar em suas investigações jornalísticas - fingir ser um "especialista em riscos" ou "perito em perfuração" para extrair análises do Claude. A diferença é que ferramentas como Claude Code podem executar ações reais, não apenas explicar técnicas.

O texto levanta questões críticas sobre a fonte: a própria Anthropic, que tem interesse comercial em se posicionar como a “IA mais segura e responsável” de todas. O relatório não fornece indicadores técnicos verificáveis, não nomeia organizações afetadas e seu timing - novembro de 2025, em meio a debates sobre regulação de IA — é conveniente demais. Mais importante: se a IA pode ser enganada para conduzir este tipo de espionagem estatal, isso pode mudar radicalmente o trabalho investigativo. Atribuição de ataques, proteção de fontes e verificação de informações se tornam mais complexas quando agentes autônomos operam 24/7, adaptando-se e até alucinando descobertas falsas. Van Ess conclui: "Pretender que operações autônomas movidas por IA não estão acontecendo não protege ninguém. Entender como funcionam — e como falham — talvez proteja."

_ A MariaLab lançou, semana passada, o projeto "Forense Digital Feminista", resultado de uma pesquisa com 11 organizações internacionais sobre como integrar análise forense digital com cuidado e direitos humanos no atendimento a vítimas de violência de gênero facilitada por tecnologias (VGFT). A organização feminista brasileira atende casos de vigilância online, clonagem de contas, vazamento de imagens íntimas e invasão de e-mails através da Maria D'ajuda. O trabalho propõe um modelo que vai além da perícia tradicional, aplicando o conceito de "forense digital consentida", técnicas antes restritas a especialistas, mas adaptadas com escuta ativa, empatia e apoio personalizado.

O material inclui o Guia Forense Feminista com passo a passo para atendimento e dois tutoriais sobre ferramentas de extração de dados, desenvolvidos para capacitar linhas de ajuda que operam com recursos limitados. A proposta é oferecer procedimentos de aplicação rápida que não exigem softwares altamente especializados, permitindo que organizações façam triagem inicial, revisem permissões em aplicativos e avaliem a necessidade de análise forense completa. O foco está nas pessoas atendidas, com explicações claras e conexão com redes de apoio emocional e jurídico.

_ "The Authoritarian Stack", projeto liderado pela professora Francesca Bria e pela xof-research.org, é uma investigação visual impressionante que mapeia como bilionários do Vale do Silício estão construindo uma infraestrutura privatizada de controle político nos Estados Unidos — e como esse modelo já está sendo exportado para a Europa. Baseado em um dataset open source com mais de 250 atores, milhares de conexões verificadas e US$ 45 bilhões em fluxos financeiros documentados, o site apresenta graficamente as redes de empresas, fundos de risco, políticos e ideólogos que estão transformando funções estatais em plataformas privadas. O projeto mostra como, sob a bandeira do "tech patriótico", figuras como Peter Thiel (mentor de J.D. Vance) e suas empresas (especialmente a Palantir) estão criando um sistema integrado de clouds, IA, finanças, drones e satélites onde conselhos corporativos, e não leis públicas, definem as regras.

A ferramenta interativa permite visualizar conexões preocupantes também na Europa: o CEO da Springer, Mathias Döpfner, conectado a Peter Thiel; polícias estaduais alemãs usando Palantir; a Rheinmetall ligada à empresa de defesa Anduril. Bria alerta que a Europa enfrenta uma decisão existencial: "ou construir agora uma verdadeira soberania tecnológica ou aceitar o domínio de plataformas cujos arquitetos veem a democracia como um sistema operacional obsoleto". Vale muito a pena explorar o projeto, um dos mapeamentos mais completos e assustadores que conheço sobre a concentração tecnocrática de poder em curso.

_ "On the Eve of the Cybercultural Revolution", de Brian Bartell, resgata o pensamento de James e Grace Lee Boggs e outros intelectuais negros dos anos 1960 que anteciparam debates contemporâneos sobre automação, tecnologia e capitalismo. O livro mostra como o movimento Black Power desenvolveu análises sofisticadas sobre a era cibercultural, traçando conexões entre a automação e suas raízes históricas no colonialismo e na escravidão. Figuras como Martin Luther King Jr., a Liga dos Trabalhadores Negros Revolucionários e os Panteras Negras já discutiam o "controle comunitário da tecnologia moderna" décadas antes dessas questões se tornarem centrais. Via Syllabus, o serviço de curadoria da rede criado e comandado por Evgeny Morozov.

_ “Por que o email permanece razoavelmente saudável? Porque ninguém é dono dele. O Mastodon é como o email nesse aspecto. Além disso, ele faz todas as coisas de Postar, Republicar, Citar, Seguir, Responder, Curtir e Bloquear que você está acostumado, e existem milhares de servidores e qualquer um pode executar um e ninguém pode ser dono de tudo isso. Não tem anúncios e não terá. José Murilo, no Mastodon (sua instância é a Mato.Social) destacou esse trecho do artigo “Time to Migrate”, de Tim Bray, que fala da importância de sair das redes sociais centralizadas e corporativas diante de sua crescente degradação.

MAIS CURTAS & MAIS RÁPIDAS

  • Como lidar de forma crítica com a inteligência artificial generativa em sala de aula e em processos de pesquisa e criação? Esta é a questão central do seminário "IA em Debate: Comunicação, Educação e Artes", que o Departamento de Comunicação e Artes da Escola de Comunicações e Artes da USP promove nos dias 26 e 27/11. Inscrições e a programação completa aqui, com transmissão online.

  • Robert Gehl, professor de Communication e Media Studies na York Universitye (Canadá), autor do recém publicado “Move Slowly and Build Bridges: Mastodon, the Fediverse, and the Struggle for Democratic Social Media”, atualizou seu “FOSS Academic Workflow”, com várias boas dicas de usar software livre e/ou de código aberto para o trabalho acadêmico, de Zotero a NextCloud, LibreOffice, Zettlr e Marp.

  • Brasília recebe no dia 3 de dezembro o 1º WebSocialBR – Fórum do Fediverso Brasileiro, primeiro evento do país dedicado a fortalecer as redes sociais federadas. Promovido pela Alquimídia, com apoio do CGI.br, Ibram e MCTI, o encontro reunirá administradores de instâncias, pesquisadores, gestores públicos e parlamentares no auditório do MCTI para debater as redes sociais abertas. As inscrições são gratuitas, com vagas presenciais limitadas e transmissão online.

  • CripTainha 2025: Autonomias em tempo de colapsos. O coletivo Mariscotron está puxando uma uma nova edição da CripTainha em Florianópolis -SC, uma iniciativa inspirada nas CryptoParties mundiais, na CryptoRave-SP e em outras criptofestas brasileiras.

  • A Reuters jogou luz no lucrativo negócio da Meta baseado na venda de anúncios fraudulentos em suas plataformas — Facebook e Instagram. Documentos internos da Meta obtidos pela Reuters mostram que 10,1% da receita da Meta em 2024, ou US$ 16 bilhões, veio de anúncios fraudulentos, de golpes digitais (via Manual do Usuário).

  • Semana passada, no marco da Semana de Cultura Livre, o Creative Commons Uruguay relançou a Radio Común, radio online de música uruguaia com licenças CC que podem ser baixadas, copiadas e compartilhadas, respeitando a atribuição de autoria.

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