Gatos, Alma e 5 cents #02
Gatos, Alma e 5 cents #02
Olá pessoas!
Bem-vindas aos segundo número desta newsletter recém-nascida, mas que não chora (muito) e nem da trabalho (para vocês)!
Agora que estamos íntimos e eu sei um pouco mais o que quero por aqui, talvez seja hora de fazer algumas advertências: o conteúdo dessa newsletter nem sempre vai ser agradável. Quer dizer, eu tento escrever de forma agradável mesmo as coisas desagradáveis, mas pode calhar do tema não ser divertido.
Se você perceber que algo está indo para um caminho não muito legal pessoalmente, pare, respire, leia outra coisa, espere a próxima newsletter de repente. Por outro lado, eu não tenho tendência de pegar pesado de propósito em nome do choque.
Então, sei lá, só fiquem de olho.
SONHO E MORTE FORAM DAR UMA VOLTA
Eu tenho um troço muito louco com sonhos: eles são vivídos demais. Tipo, ridículamente vividos. Lógico, eu não acho que sou superespecial, um X-Men ou coisa do tipo, mas cara, é real demais.
O mais foda é que nem sempre os que pesam são aqueles que você tem a impressão de ter sonhado a noite inteira. Aliás, não tem um lance sobre a gente achar que sonhou a noite toda, mas na real sonhar só uns cinco minutos antes de acordar? Enfim, os tensos mesmo são os que eu tenho quando dou uma cochilada no fim da tarde. Manja quando você resolve dar uma deitadinha porque tem algo importante à noite e quer estar cem por cento? Então, esses.
Tem sempre um momento em que eu estou entre acordado e dormindo, e aí surge o que, sei lá, vou chamar de um PEDAÇO de sonho, mais ou menos como um trecho de filme. Na hora parece muito real e, em geral, dramático. Tanto que quando acordo, demoro um bocado para perceber que voltei para o mundo de verdade. O sonho parece muito mais uma recordação do que um sonho mesmo. Quando é um pesadelo é ainda pior: levanto deprimido e levo um bom tempo para deixar a sensação de lado.
Semana passada tive um desses. Por algum motivo X eu estava fazendo parte de uma partida de futebol profissional. Em dado momento a bola veio pelo alto, e à minha frente dois jogadores disputaram. Um pulou por cima do outro e na hora o que estava embaixo começou a gritar: “O menino morreu, cara! O menino morreu!”.
E dava a impressão que era isso mesmo: no meio do pulo o cara parecia ter desligado. A boca aberta, mole. Os olhos revirados. Quando caiu no chão, parecia um boneco. O jogador que gritou continuou desesperado, o jogo parou e o juiz carregou o outro nas costas para fora do campo.
Então eu acordei.
Normalmente fico tentando analisar de onde saiu o sonho. Às vezes é bem fácil você apontar algo que aconteceu durante o dia e te deixou impressionado. Normalmente duas ou mais coisas se misturam e viram um megazord de pesadelo. Mas, sendo honesto, esse aí teve zero motivos, ainda que o rosto do menino morto me remetesse ao pobre Dener, moleque craque demais, morto em 1994 num acidente de carro. Ele havia reclinado o banco do passageiro para dormir e, na batida, o cinto o asfixiou. Os jornais estamparam a cena do corpo na primeira página e eu nunca mais esqueci.
Bonus track: DEPOIS de todo esse rolê do sonho (e eu sei que foi depois porque já tinha anotado para comentar aqui com vocês), eu estava em um hotel em São Paulo e liguei a TV enquanto trocava de roupa. Coloquei num canal de esportes e, do nada, o que estava rolando? Uma mesa redonda com ex-jogadores debatendo mortes de jogadores de futebol em campo. Sério.
Bonus track 2: essas mortes já aconteceram bem mais do que quem não acompanha futebol imagina (aqui tem uma lista que acredito ser parcial, mas o link tem algumas imagens fortes). Acho que a mais simbólica no Brasil foi a de Serginho, do São Caetano, num jogo contra o São Paulo. Ele passou mal, caiu, tentaram reanimá-lo mas não foi possível. Em geral os falecimentos rolam em decorrência de algum problema cardíaco até então desconhecido. Na última Euro, Christian Eriksen, jogador da Dinamarca e da Inter de Milão, praticamente desmontou em campo, do nada, com a bola ainda nos pés, por conta de uma parada cardiaca. Ele foi socorrido, conseguiu se recuperar com a implantação de um cardioversor desfibrilador implantável (um tipo de marca-passo que eu não tenho ideia de como funciona), mas teve seu contrato rescindido porque na Itália não é permitido que um jogador entre em campo nessas condições. Eriksen foi contratado então pelo Brentford, time inglês de menor expressão na Premiere League, e deve fazer sua estreia hoje (26/02). Bota mais uma coincidência na lista.
NO BONDE DAS COINCIDÊNCIAS
Só para não perder, aconteceu outra dessas essa semana.
Eu estava ouvindo uma das minhas playlists e o Spotify usou aquela função de ir tacando músicas que acha que combinam com as que você acabou de ouvir (e em geral funciona super bem). Aí entrou uma música de uma banda de emo raiz chamada Rainer Maria.
Assim, eu não ouço Rainer Maria há ANOS. Quem me indicou foi meu amigo Breno Tamura, que sempre foi uma verdadeira fonte de bandas alternativas pouco conhecidas. Pois bem, o nome da banda é em homenagem a Rainer Maria Rilke, um poeta e novelista autríaco, morto em 1926. Bom, beleza.
Aí fui assistir o episódio da semana de Euphoria, também conhecida como a novelinha da Zendaynha drogada, e uma personagem tava muito triste por motivos X. Uma amiga, compadecida, chega para ela e diz: “Posso ler um poema para você?”
Adivinhem o autor.
Pois é.
WORDS
Eu nunca escondi de ninguém que, de uns anos para cá, tenho tido dificuldade para escrever.
Não é “privilégio” meu. Sente meia-hora com um escritor que se sinta minimamente a vontade com você e prepare-se para ouvir como vomitar palavras por aí é muito mais difícil do que parece. Quando você se importa em fazer direito, claro.
Aos poucos, com a ajuda da terapia, fui tentando diagnosticar de onde isso vem, além do desgaste normal de mais de duas décadas nessa brincadeira. Mais do que isso, tenho, já há algum tempo, tentado encontrar atalhos para diminuir esse problema e, quem sabe um dia, voltar ao que era antes (antes: um tempo em que eu só sentava, escrevia e foda-se).
“Mas Trevisan, você está fazendo essa newsletter! E seus editoriais na Dragão Brasil são ótimos!”.
Pois é, mas meu problema é bem específico: prosa e ficção. Se eu estou falando da minha vida ou divagando sobre o mundo, está tudo bem. Se eu tento pensar sobre um conto ou coisa do tipo... aí fodeu. Me dá desespero encarar a tela em branco, a folha em branco, um papiro, um pergaminho, o que seja. A impressão é que eu escrevo, escrevo e nada acontece, feijoada. Nada anda. O texto fica minúsculo e não presta.
Claro, estou sendo radical. Meu amigo, sócio e editor-chefe, Guilherme Dei Svaldi, diz, muito sabiamente, que histórias não têm tamanho. Ainda mais nestes tempos de leitura em celular, pouco tempo e atenção reduzida. Eu nem reclamo dessas coisas. Elas são como são: ou você anda junto com o mundo, ou fica para trás se lamentando que na sua época tudo era melhor (não era, só era diferente).
Mas voltando, as flash fictions, histórias curtíssimas (às vezes incríveis, às vezes terríveis, mas hey, não é assim desde que o mundo é mundo?) estão aí para comprovar que ele está certo.
Outro pseudo-problema que eu tenho é a concisão. Escrever roteiro de mangá, ainda que esporadicamente, por dez anos, me tornou extremamente econômico nas palavras. Eu não consigo ficar dando voltas, não consigo descrever as coisas ou me importar com elas como é necessário num conto. O que acontece agora? O que acontece depois disso? Aonde isso chega? É isso o que me interessa. Eu tenho certeza que, de algum modo, é possível transformar isso em virtude, mas não descobri como.
Costumo falar que o modo como escrevo hoje é como eu dirigiria se tivesse carro. Já o modo como eu acho que deveria escrever, é o modo como a minha mãe dirige. Complicou? Eu explico.
Se eu dirigisse e quisesse ir do ponto A ao ponto B, escolheria o caminho mais curto, com menos trânsito e – surpresa das surpresas – iria do ponto A ao ponto B. No alarms and no surprises, diria o Radiohead.
Já a minha mãe, sairia do ponto A, faria um desvio para parar no supermecado A2, daria um oi para a amiga A3 que mora ali perto, desviaria pelo bairo A4 para ver as belas casas, faria questão de parar em frente ao sobrado A5 para conferir se as rosas do jardim já floresceram, abasteceria o carro para o dia seguinte no posto A6, tentaria o caminho A7 (mas pegaria trânsito), e só então retomaria a trajetória para o nosso já esquecido ponto B.
Pode parecer que estou criticando minha querida mãe (e confesso que quando era criança/adolescente, sofrendo de uma ansiedade não diagnosticada, isso era meio torturante, embora eu gostasse da companhia), mas é o contrário. Já me conscientizei que se eu quiser voltar a escrever prosa, terei que ser um pouco como ela. Aproveitar mais o caminho, notar as coisas em volta, me divertir com o percurso e não só com a chegada.
Outra coisa que descobri, e é uma descoberta bem pouco genial, é que eu precisava ler mais livros em português. A leitura é o combustível da escrita, não tem jeito. Se você só lê em outra língua, mas escreve em português, acaba criando um ruído. Acontece isso com todo mundo? Sei lá. Mas eu percebi que acontece comigo. Quando estou lendo prosa em português, minha cabeça pensa melhor na língua em que eu preciso produzir.
A última descoberta é muito recente: pensando no meu medo do Word e correlatos (aqui uso Open Office e Google Docs), me dei conta que há muitos ANOS eu não usava qualquer programa similar para escrever. Tá, eu uso Google Docs para o roteiro de LEDD, mas é outro formato. E os editoriais da Dragão, para facilitar minha vida, eu escrevia direto no InDesign, o programa que eu usava para diagramar a revista. Agora que a função não é mais minha, me dei conta disso e passei a usar o Open Office tanto para os editoriais quanto para a newsletter (que eu podia muito bem escrever direto no site que envia a dita cuja).
Eu nunca prometo que as coisas vão mudar, nem para mim mesmo. Então meio que não sei onde vão parar essas descobertas todas. Pode não dar em nada, mas cada peça do quebra-cabeças mostra mais o todo, e isso só pode ajudar no fim das contas.
Isso, claro, se não rolar uma Terceira Guerra Mundial e tal.
É isso aí por hoje!
Cuidem-se, aproveitem o Carnaval e assinem a Dragão Brasil!
Cheers!
J.M.Trevisan